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14/10/2021 00:00

O que afetou a queda de demanda no transporte público na pandemia?

QUEDA DA DEMANDA DO SETOR DE TRANSPORTE PÚBLICO NA PANDEMIA

Caso de Análise: Cidade de São José dos Campos

Autor: Luiz Carlos M. Néspoli

Superintendente da ANTP

Propósito

O impacto da pandemia no setor de transportes coletivos urbanos foi objeto de preocupação pelos órgãos públicos responsáveis pelo setor, assim como pelas empresas concessionárias. O principal dos impactos observados foi a drástica redução da demanda e, como consequência, a queda da arrecadação, causando déficits entre custos e receita e tensão entre poder concedente e concessionários.

Durante os anos de 2020 e 2021 o tema da perda da demanda foi e vem sendo objeto de muitas discussões, estando subjacente nos debates a hipótese da migração dos passageiros dos ônibus para os automóveis e para os aplicativos, uma perda que se temia irreversível, colocando em risco a precarização dos serviços e, em muitos casos, do seu desaparecimento por falta de condições econômicas sustentáveis.

Desde o início da pandemia e até o presente, o transporte público foi e continua sendo objeto de acompanhamento da mídia, com o foco principal na lotação e nas condições suspeitas de insalubridade. O temor de contaminação de parte da população é um dos fatores que tendem a dar alento à hipótese de migração dos passageiros dos ônibus para o transporte individual particular ou para os aplicativos.

É certo que o sistema de transporte público, mesmo nos momentos em que ocorreram as mais rigorosas restrições de abertura da atividade econômica, foi obrigado a manter a rede em funcionamento dentro de padrões de oferta mínimos em razão da manutenção das atividades essenciais, o que causou impactos importantes na arrecadação e no equilíbrio financeiro dos contratos.

As restrições de abertura das atividades da cidade e da prática de distanciamento social certamente levaram a uma diminuição da circulação em geral. Uma das perguntas que se faz é se isto ocorreu em todos os modos de transporte. A segunda questão é se com o passar do tempo e com a redução progressiva das restrições as tendências observadas se manterão entre eles. Em síntese, se pretende analisar a hipótese se teria ocorrido na pandemia uma forte migração de passageiros do transporte público para o transporte individual, seja para o particular ou para o aplicativo, em face do receio de se viajar em coletivos.

No intuito de contribuir para esta discussão, buscamos analisar como foram os efeitos da pandemia nos principais modos de transporte de passageiros da cidade, tendo por referência dados reais de demanda no TP, da arrecadação no transporte por aplicativo e do fluxo de trafego viário de veículos em geral.

Proposta de análise

A ideia foi verificar como se deu o uso dos modos de transporte público, de transporte individual e de transporte por aplicativo ao longo dos anos de 2019, 2020 e 2021.

Para essa análise foram utilizados dados da cidade de São José dos Campos, que mantém uma excelente base de informações, a qual foi gentilmente fornecida pela Secretária de Mobilidade da cidade.

Para efeito da análise, se considerou o ano de 2019 como um ano típico anterior à pandemia. Os dados deste ano serviram de referência para se efetuar a comparação com os anos anteriores e, para se evitar desvios de sazonalidade, ela foi feita mês a mês.

Como o efeito das restrições à abertura da atividade econômica são mais sensíveis nos dias úteis, foram expurgados os dados relativos aos sábados, domingos e feriados e tratados apenas os dados de dias úteis, adotando-se a média diária, que foi calculada considerando-se a soma dos volumes diários e a quantidade de dias úteis em cada mês.

Base de informações

•       Passageiros transportados no sistema de transporte público

A cidade de São José dos Campos mantém um registro diário do volume de passageiros transportados em todas as linhas da rede de transporte público local. Foram utilizados dados de 2019, 2020 e 2021 (até o mês de outubro).

•       Passageiros transportados no transporte individual por aplicativos

Os dados disponíveis são de arrecadação diária das 5 empresas fornecedoras de aplicativos e que são regulamentadas na cidade. Como uma das regras de funcionamento do sistema, as empresas são obrigadas a transferir para o fundo municipal de transporte uma taxa que incide sobre a arrecadação.

Cabem ao aplicativo 99 e à Uber 99,8% da arrecadação deste modo de transporte. Por decisão judicial, a Uber deixou de informar a receita do seu aplicativo a partir de novembro de 2020. De qualquer forma há informações do aplicativo 99 em todos os anos de análise.

•       Fluxo de tráfego na cidade

A gestão municipal possui câmeras instaladas ao longo do sistema viário da cidade, as quais permitem obter a contagem de fluxo. O sistema de câmeras da cidade obtém contagens diárias do volume de tráfego total nas vias de trânsito rápido e arteriais e de algumas coletoras da cidade. As informações utilizadas na presenta análise se referem aos anos de 2019, 2020 e 2021 (até o mês de outubro).

Tratamento das informações

Para efeito da análise da evolução da demanda em cada modo de transporte, as comparações foram feitas entre o mês de cada ano e o correspondente mês dos demais anos de análise.

Sendo considerado como ano de referência, os dados relativos aos meses de 2019 foram fixados na base 1, resultado da divisão do volume de cada mês por ele mesmo. Já os dados dos meses de 2020 e 2021 foram calculados dividindo-se o volume de cada mês pelos correspondentes em 2019.

Constatações

A seguir, são apresentados os gráficos pelos quais se procura verificar como se deu a evolução nos números médios diários nos anos de 2020 e 2021 quando comparados mês a mês com 2019.


  • Gráfico 1 – Média de volume de tráfego em dias úteis – Comparação entre os anos de 2020 e 2021 (até outubro) com o ano de 2019

Pelo Gráfico 1, é possível observar que o volume de tráfego no começo de 2020 começa maior do que o correspondente em 2019, algo como 9% acima, mas a partir de fevereiro e acentuadamente em abril de 2020 há um queda abrupta, caindo para 0,63 do fluxo do mês correspondente de 2019, ou seja uma redução de 37% . A partir de então, observa-se um crescimento progressivo, chegando a 0,85 em agosto de 2020 (queda de 15% em relação a 2019) e voltando aos patamares de 2019 em novembro, um pouco maior (7%) em dezembro e iniciando janeiro de 2021 com 22% a mais. Em seguida cai novamente ficando em torno de 1,05 e 1,06, ou seja, apenas 6% a mais que os meses correspondentes de 2019. Verifica-se, assim, a tendência de seguir os patamares de 2019.

  • Gráfico 2 – Volume médio diário (dias úteis) de passageiros transportados na rede de ônibus – comparação com 2019

No começo de 2020, o sistema de transporte público transportou 98% do número de passageiros de janeiro de 2019, representando um começo dentro da média normal do ano anterior. Em seguida, a partir de fevereiro e março e, especialmente de abril de 2020, observa-se uma queda significativa do número médio de passageiros transportados por dia útil, representando 30% do mês equivalente de 2019, ou seja, uma queda de 70%. A partir de então, inicia um ligeiro crescimento, muito mais lento que o observado no transporte individual, chegando em dezembro com 63% do mês correspondente de 2019, ou seja, ainda uma queda de 37%, aumentando progressivamente, mas em outubro/21 ainda estava com 70% em relação ao mês correspondente de 2019.

Para o sistema de aplicativo foram elaborados dois gráficos No Gráfico 3 foram somadas as arrecadações da Uber e do aplicativo 99 para se permitir uma avaliação global desse sistema. Como a Uber parou de informar em novembro de 2020, o gráfico mostra apenas a relação entre 2020 e 2019. Já o Gráfico 4 contempla os dados apenas do aplicativo 99 e, neste caso, para os três anos em análise.

Observando o Gráfico 3, verifica-se que a soma da arrecadação dos aplicativos nos meses de janeiro e fevereiro de 2020 já eram maiores do que nos meses correspondentes de 2019 (entre 50% e 60% maior), mas, como os demais modos, apresentou uma queda de 16% em abril de 2020 com relação ao mês correspondente de 2019. Se considerarmos o patamar anterior, a queda foi de 109%, oscilando próximo dos patamares de 2019, mas terminando o ano com queda de 19%.

Observando o Gráfico 4, nota-se no aplicativo 99 fato semelhante. No começo de 2020 o aplicativo arrecadou o dobro do arrecadado em 2019, mas em abril de 2020 a queda, embora pequena em relação a 2019, foi significativo com relação aos meses anteriores de 2020, ou seja, uma queda de 156%. Deste mês em diante, houve uma recuperação progressiva, terminando o ano com 31% acima da média do mesmo mês de 2019. No início de 2021, o crescimento foi expressivo, cerca do dobro de 2019, mas com tendência de queda, chegando a agosto de 2021, chegando a 64% acima do mês correspondente de 2019. Deve-se considerar que 99 e Uber competem entre si. Embora individualmente o 99 apresente um desempenho acima da média de 2019, a soma dos movimentos de arrecadação dos dois indica uma tendência do desempenho se acomodar aos patamares da pré-pandemia.

  • Gráfico 3 – Volume arrecadado pelos principais aplicativos (soma de Uber + 99) – Comparação com 2019

  • Gráfico 4 – Arrecadação pelo aplicativo 99 – Comparação de 2020 e 2021 com 2019.


Comentários

Em 2020, com o início da pandemia, houve uma redução drástica no volume de tráfego nas vias, no volume de passageiros transportados nos ônibus e na arrecadação dos transportes por aplicativos, com acentuada queda no mês de abril daquele ano. O impacto deveu-se à adoção de medidas restritivas impostas pelos governos em quase todos os setores da economia, pela paralisação das aulas nas escolas e pelo isolamento social como política sanitária.

A partir de abril de 2020, observou-se progressivamente um aumento tanto no volume de tráfego nas vias e na arrecadação dos aplicativos e um pouco menos no número de passageiros transportados nos ônibus quando comparados com 2019. Em 2020, houve muito mais crescimento no fluxo de veículo nas vias, que atingiu 85% do observado em 2019, como também nos aplicativos que chegaram nos mesmos patamares de 2019, enquanto que no transporte público o volume de passageiros ainda era de 47%.

No final de 2020, o volume de tráfego nas vias já tinha atingido os valores de 2019 e até ultrapassado um pouco, mas ainda dentro de margens próximas da média de 2019. O mesmo ocorreu com o transporte individual por aplicativo. Já o volume de passageiros mal atingia 63% em relação aos volumes de 2019.

Em janeiro de 2021, o tráfego de veículos mantinha-se acima do observado em janeiro de 2019 (22% maior), mas paulatinamente nos meses seguintes se aproximou dos valores mensais médios de 2019.  Da mesma forma ocorreu com o sistema de aplicativos. Já o volume de passageiros no TP, embora crescente, se manteve ainda bem abaixo dos observados nos meses correspondentes de 2019, atingindo 70% em outubro/21.

Embora existam 5 empresas fornecedoras de aplicativos na cidade, Uber e 99 detém 99,8% de toda a demanda. Tomadas as arrecadações em conjunto ou apenas individualmente a do aplicativo 99, observa-se um comportamento semelhante ao do fluxo de veículo nas vias.

Deve-se considerar que a arrecadação dos aplicativos depende basicamente do conceito de tarifa dinâmica que são devidas ao valor cobrado do cliente, do valor do preço do combustível e também do desequilíbrio entre oferta de “carros na praça” e da demanda. É possível que na pandemia tenha havido majoração do valor das corridas, o que pode explicar em parte também o aumento da arrecadação neste sistema.

Por outro lado, os passageiros de aplicativos procuram esse modo para realizar viagens mais curtas em razão do preço e também porque são de classes de maior renda e que moram mais perto dos locais de trabalho, sendo possível que tenham atraído mais pessoas do transporte particular do que dos ônibus.

Possíveis interpretações

Com a progressiva redução nas restrições, houve um ligeiro crescimento da economia que parece ter sido mais favorável às classes de maior renda, cujas atividades próprias foram voltando progressivamente à normalidade, o que justifica o aumento no tráfego de transporte individual (particular ou por aplicativo), enquanto a falta de empregos ainda fazia com que uma boa parte das classes de menor renda ainda não voltasse a viajar.

O aumento da atividade econômica e a natureza das atividades que iam sendo restabelecidas progressivamente, na medida em que a vacinação avançava e as restrições iam sendo diminuídas, favoreceram mais as classes de maior renda.  É possível que, por isso, uma pequena parte dela que usava ônibus migrou para o automóvel particular ou para os aplicativos.

Os passageiros que se mantiveram nos ônibus durante a pandemia, especialmente na fase aguda, em razão de sua renda e do tipo de emprego ou atividade precária, certamente fizeram um balanço entre o risco de contaminação alardeada pela mídia nos ônibus e a necessidade de manutenção de sua renda.

Os comentários anteriores podem explicar a volta do fluxo de veículos e da arrecadação dos aplicativos aos patamares de 2019, mas não significa que isto se deveu a uma transferência importante de passageiros dos ônibus para o transporte individual.

A perda de renda das classes mais pobres pela ausência de empregos ou de serviços ao que parece foi o fator que predominou na redução drásticas dos deslocamentos e, por consequência nas viagens por ônibus. Dados recentes (outubro/21) da FGV indicam que a renda média do trabalhador brasileiro em 2021 caiu 9,4% em relação ao ano de 2019.

Por outro lado, a queda na economia pode não ter afetado com a mesma intensidade os usuários de transporte individual ou de aplicativo, voltando seu uso nos patamares de 2019, o que pode ser constatado pelos gráficos apresentados.

Especulando sobre o futuro

Tudo indica que o volume de tráfego de veículos, dada a linha de tendência observada, se manterá nos patamares de 2019 e o mesmo deve acontecer com os aplicativos.

O aumento no volume de passageiros no transporte público se manterá baixo até que a economia apresente crescimento capaz de absorver as classes de menor renda, com a geração de empregos e aumento de renda.

No entanto, mesmo assim, o aumento no volume de passageiros no transporte dependerá de uma tarifa que seja acessível à população. Dado o caráter de essencialidade e de direito social do transporte público, isso vai requerer um esforço, de um lado, para se adotar medidas de redução de custos operacionais e, por outro, de buscar receitas não tarifárias que resulte tarifas módicas, um dos objetivos da Política Nacional de Mobilidade.

Já para que o transporte público resgate os passageiros de classes de maior renda que migraram para o individual, ou que atraia novos passageiros destas classes, será necessário que apresente maior qualidade e também inovações na prestação de serviço, e ainda que consiga modificar a percepção da imagem perante este extrato da população e, em decorrência da experiência da pandemia, que demonstre ser também seguro frente ao vírus.

Conclusão

A hipótese inicial proposta de que houve uma migração expressiva de passageiros do transporte público para o transporte individual (particular ou por aplicativo) não é plausível. Os dados não indicam que houve tal migração, já que o volume de tráfego viário geral da cidade e a arrecadação dos aplicativos voltaram aos padrões de 2019. Os dados analisados indicam, ao contrário, uma redução no volume de passageiros, cuja explicação mais aceitável é a drástica alteração da atividade econômica, que desfavoreceu as classes de menor renda e que por esta razão deixaram de viajar.

Com a volta da atividade econômica, o aumento da vacinação e o controle maior da pandemia e a consequente redução do temor de viajar em transporte público e tarifas mais acessíveis, é possível imaginar o retorno da demanda dentro de dois ou três anos.

Cabe ressaltar que o desequilíbrio entre a demanda de 2019 e as de 2020 e 2021, assim como até que se restabeleça a normalidade, isso tem repercussões importantes no equilíbrio financeiro e na segurança jurídica dos contratos, podendo haver, como já vem acontecendo, desistências de operadores e, como mais frequente, a precarização do transporte público. É fundamental a entrada de recursos extra tarifários e, mais do que nunca, a participação mais objetiva da União, de maneira a se poder manter um sistema de transporte com qualidade, visto que ele é constitucionalmente essencial e um direito social.

Generalização do estudo

O fenômeno pode ser melhor estudado e ainda generalizado, dependendo de se ter informações como as da cidade de São José dos Campos, mas também de se contar com outras variáveis, como nível de renda da população, da atividade econômica local, da qualificação do emprego, dos valores da tarifa e outras condicionantes da escolha da viagem e, por essa razão, os resultados obtidos em São José dos Campos não permitem, necessariamente, a generalização para outras cidades, mas podem, no entanto, dar uma boa ideia do que ocorreu na pandemia e o que poderá ocorrer no futuro.

 

Out/2021

 



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