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23/10/2019 00:00

Felicio Ramuth

Transporte Urbano precisa mirar o futuro

Entrevista originalmente publicada na Revista NTUrbano, edição 40

O prefeito de São José dos Campos, Felicio Ramuth, enxerga longe no planejamento urbano da cidade, antecipa tendências de sustentabilidade no transporte público e prepara uma licitação que deixará a cidade atualizada para os desafios que a nova mobilidade vai impor aos gestores públicos no Brasil e mundo afora.

Prefeito de São José dos Campos (SP) e vice-presidente de Assuntos de Mobilidade Urbana da Frente Nacional de Prefeitos (FNP), Felicio Ramuth está convencido de que o grande desafio da mobilidade urbana é compreender a mudança de conceitos, advinda em parte com uso de tecnologia, que está se desenhando no Brasil e no mundo. Essa leitura de cenário vem de sua carreira e de sua experiência em ambos os cargos. Ramuth teve a oportunidade de conhecer realidades de transporte e mobilidade no exterior e trouxe essa experiência para orientar a construção da licitação de transporte público que será realizada em São José dos Campos. Está preocupado com sustentabilidade, eletrificação da frota, ampliação da qualidade do serviço e implantação do Veículo Leve sobre Pneus. O Prefeito conversou com a Revista NTUrbano e contou alguns de seus planos à frente da cidade e sua experiência na FNP, confira.

Como tem sido conciliar a agenda da prefeitura e os trabalhos na FNP? O que é mais difícil nisso?

Os assuntos, de fato, têm se complementado. Como a FNP nos dá a oportunidade de encontrar, em várias ocasiões, com outros prefeitos, e considerando que estamos na construção de um edital de licitação para o novo transporte público da cidade, a gente leva as informações e também consegue aprender ao longo dos eventos, inclusive com ideias para o novo edital de licitação. Eu tenho levado essas duas agendas com bastante tranquilidade.

Como a FNP está trabalhando o conteúdo do documento Construindo Hoje o Amanhã: propostas para o transporte público e a mobilidade urbana sustentável no Brasil?

Tivemos uma entrega no último encontro da FNP em Brasília, quando levamos o documento ao Ministério (do Desenvolvimento Regional). Depois disso, eu tive a oportunidade de participar de audiências públicas na Câmara Federal tratando desse tema em Brasília, expondo esses conceitos do Construindo Hoje o Amanhã, para que possamos ter os cinco principais pontos desse caderno implementados com a maior rapidez possível e todos os membros da federação que o envolvem (governo federal, estadual e municipal) e até mesmo as empresas participando.

O senhor encontrou experiências interessantes em viagens ao exterior? De que forma essas iniciativas podem ser adaptadas, trazidas ou implantadas aqui no Brasil?

Como as realidades são distintas, a gente não encontra uma solução mágica, uma grande solução que possa ser transferida para o município. O que a gente percebe é que nos próximos dez anos a mobilidade vai se transformar. Uma série de fatores, além do avanço da tecnologia, vão influenciar na forma das pessoas irem e virem. O que vi no exterior são algumas iniciativas, mas nenhuma solução completa. Até porque parte da Europa conta com um subsídio grande dos governos nacionais na mobilidade urbana. Estive agora em uma feira no México, onde o transporte público municipal é de responsabilidade não do município, mas do Estado, que cuida desse tema na cidade. Existem modelos muito diferentes. O que a gente vê são iniciativas positivas que podem ser readequadas para a realidade do nosso país. Por exemplo, a gente já viu a eletrificação, veículos elétricos, ônibus elétricos, sistemas de transporte sob demanda... Uma série de iniciativas que podem ser transferidas e tropicalizadas aqui para o nosso país.

O senhor mencionou a licitação de São José dos Campos. Desde o início de sua gestão, o que foi implantado de melhoria no transporte coletivo e o que vai vir de novidade?

A primeira grande novidade é a implantação do corredor de veículo leve sobre pneus, um VLP, que será feito elétrico, e que é uma forma de transporte inovadora. Num país que já passou pelo ciclo do BRT, nós agora acreditamos muito na implementação do VLP, que é uma obra que se inicia agora no final do ano e até o início da construção, em abril de 2021, vai estar também com a licitação concluída. Além disso, a Fundação Getúlio Vargas está estudando conosco novas soluções, principalmente a mobilidade como serviço (Maas) e novas tecnologias para fazer a gestão de recursos, como a arrecadação. Eventualmente, no futuro, poderemos ter a implementação da mobilidade como serviço. Do ponto de vista do que nós já conseguimos modernizar na licitação atual, existiram as trocas naturais de ônibus, mas nenhum salto qualitativo da forma que a população de São José precisa e pede, esse é um passo que vamos dar, definitivamente, com a nova concessão pública.

Na sua visão, o que as cidades precisam fazer para melhorar a mobilidade urbana?

Oferecer um transporte público de maior qualidade. E isso passa diretamente pelos pontos do Construindo Hoje o Amanhã. Oferecer uma melhor estrutura para o transporte público, a questão de novas linhas de financiamento público para o transporte — até porque a gente vê iniciativas de mobilidade que não estão alicerçadas no transporte coletivo público e têm atendido a população, mas não de forma universal. Exemplo disso são os aplicativos, que estão fazendo um trabalho importante para a cidade, mas que não atendem por completo as necessidades do transporte universal e de interesse social. É preciso entender claramente que as empresas privadas do transporte individual privado têm como objetivo a geração de lucro e recursos. Já o transporte público atende toda a cidade, onde se tem um resultado melhor compensa — vamos dizer assim — o resultado inferior em outras regiões da cidade. Assim você consegue universalizar o acesso. Eu acredito que todos os pontos do Construindo Hoje o Amanhã envolvem uma melhoria da prestação de serviço por meio de investimentos públicos, transparência, novas formas de financiamento e investimento em infraestrutura.

O senhor considera que o Construindo Hoje o Amanhã é um bom balizador para o que precisa ser feito no transporte coletivo de forma geral no Brasil?

Sem dúvidas. Esse documento foi construído escutando os usuários, gestores públicos e operadores de serviço. Então, ele conseguiu integrar todos os atores envolvidos na prestação desse serviço, para que a gente pudesse apresentar a todas as esferas governamentais e à população as diretrizes de investimentos e ações para o futuro.

Qual a importância do transporte público coletivo nesse contexto da mobilidade urbana que estamos conversando?

Ele é fundamentalmente universal e tem objetivo social. O transporte público chega onde nenhum outro transporte consegue alcançar. Nós implementamos novas tecnologias para que o transporte público coletivo seja ainda mais eficiente, como o transporte sob demanda, novo sistema na cobrança tarifária, mais transparência na gestão dos recursos envolvidos na remuneração do transporte público. Tudo isso vai dar um novo conforto, e virá um novo momento, para que possa voltar a atrair público. Porque a gente vê que a cada ano o transporte público coletivo acaba perdendo passageiros para outros sistemas. Às vezes, o transporte individual, o automóvel, o transporte sob demanda nos aplicativos, ou até mesmo as motocicletas. Muita gente opta pela individualização, e tudo isso não contribui nem para o meio ambiente e nem para uma prestação de serviço ampla como aquela que está baseada no transporte público coletivo.

O transporte sob demanda que o senhor menciona é o transporte por aplicativo?

O transporte sob demanda que a gente fala é sobre ir buscar as pessoas com determinado tipo de veículo. O que a gente vê hoje é que esses aplicativos fazem isso individualmente, mas as empresas de transporte coletivo podem usar dessa tecnologia para melhorar os serviços, principalmente com linhas alimentadoras, usando o transporte sob demanda. Ele é, sim, por meio da tecnologia, mas não da forma que a gente conhece hoje. Vimos no Seminário da NTU a apresentação da empresa de Goiânia que presta esse serviço na forma de teste de implementação, para fazer a validação ainda (HP Transportes, operadora do serviço CityBus 2.0). Acredito que, no futuro, isso pode ser implementado dentro da concepção do sistema de transporte público coletivo.

Como funcionaria esse transporte sob demanda?

Por exemplo, vans ou micro-ônibus, em bairros mais distantes, conseguem buscar os passageiros nas avenidas principais, levando com trajeto fixo até alguma linha alimentadora, integradora. E assim ele faz o transporte até o centro da cidade. Esse é um dos exemplos em que o transporte sob demanda pode atuar, ganhando eficiência, porque essa pequena van já sairia com o objetivo de buscar esses passageiros, fazendo com que tenha mais frequência para melhorar o serviço nos bairros mais distantes e eficiência para que não impactasse no valor da tarifa.

Qual a avaliação que o senhor faz do serviço de transporte por aplicativos?

O serviço de transporte por aplicativos tem cumprido um papel importante dentro das cidades. Veja um exemplo, a gente tem três empresas de ônibus em São José, que prestam serviço com 299 veículos e milhares de funcionários — elas faturam juntas cerca de R$ 15 milhões em tarifas para transportar a população da cidade. Já as duas empresas de transporte por aplicativo faturam R$ 14 milhões, praticamente o mesmo das empresas de ônibus, mas para um serviço que até dois anos e meio atrás não existia. De onde vêm esses clientes dessas empresas? Parte vem do transporte público, o que aumenta a pressão sobre a tarifa, porque reduz a demanda; parte vem do transporte público individual (táxi), e parte é de passageiros que não utilizavam nem táxi e nem ônibus e que passaram a usar os aplicativos. A meu ver, esse serviço contribui sim com o dia a dia da cidade, mas, no ponto de vista negativo, pressiona os valores da tarifa do transporte público porque diminui a demanda do transporte coletivo.

Qual a importância de regularizar esse serviço de transporte por aplicativos e qual a solução que vocês encontraram em São José dos Campos?

É fundamental. Fizemos isso há dois anos e meio, logo no início da minha gestão, até para que as regras estejam bem claras e bem estabelecidas e que todos saibam como cumpri-las. A regulamentação é fundamental para que se mantenha o ordenamento urbano. Nós fizemos isso por meio de Lei e Decreto.

Como o senhor avalia a priorização do transporte coletivo nas cidades? É viável e traz resultados efetivos?

Sem dúvidas. Este é um dos pontos do caderno Construindo Hoje o Amanhã. As faixas exclusivas, os corredores do BRT, ou agora do VLP (que na verdade é uma evolução, mas conceitualmente tem muito do BRT), trazem uma melhoria de tempo da viagem que é importante. Isso oferece mais conforto e regularidade nas viagens, com horários mais definidos, e permite menos surpresa ao longo da viagem, garantindo a hora de saída e de chegada do usuário. Os corredores são muito importantes, assim como as faixas exclusivas.

O que o senhor considera como principais desafios para que isso seja implantado?

O tema é muito amplo em várias realidades. Mas, sem dúvidas, o maior problema são os recursos e investimentos para que isso seja feito. O que a gente vê de todos os recursos utilizados nos últimos anos para investimento em BRT e VLP é empréstimo. Não vemos nenhuma participação direta do Tesouro no transporte público, o que na minha opinião é um grande erro, porque em outros países isso acontece. O que vemos de grande investimento na cidade normalmente está atrelado a financiamentos e empréstimos. Acredito que deve haver recursos do Tesouro também direcionados à implementação das vias e corredores pela cidade. Lembrando que onde se oferecem recursos, a transparência deve ser muito grande para que se possa ver onde esses recursos são aplicados. A gente viu que na mobilidade, infelizmente, vários recursos foram mal investidos.

Como as cidades podem agir para endereçar essas questões do trânsito e da mobilidade urbana?

Especificamente na questão da mobilidade urbana, um momento de nova concessão é o momento certo de planilhar e colocar no papel todas essas questões, para ver de que forma esses investimentos podem ser economicamente viáveis. As concessões podem ser uma grande oportunidade. A meu ver, devemos envolver todos os recursos de futuras concessões na própria melhoria desse sistema. Nós percebemos em outras cidades o uso de outorga como fonte de receita em construções. Eu percebo que uma grande maioria, se não a totalidade, das possíveis outorgas, deve ser investida no próprio sistema. Isso traz uma qualidade percebida pelo usuário. Penso que uma das formas é reduzir, ao mínimo necessário possível, as outorgas e aumentar, ao máximo, os investimentos feitos por esses futuros prestadores de serviços na cidade, em vez de utilizar esse recurso no caixa da prefeitura. Isso pode trazer um bom resultado em curto prazo. É a diferença, realmente, dos países desenvolvidos, que subsidiam implementações e inovações e até mesmo a tarifa por meio de recursos federais. Isso é um grande diferencial e uma grande dificuldade para as cidades pequenas.

O senhor acha que no poder público, aqui no Brasil, existe espaço e interesse em fazer isso?

Não, eu não acredito que seja uma prioridade do governo federal, de todas as gestões que a gente viu. O que precisamos é, cada vez mais, expor essa situação para que isso sensibilize as pessoas e os governantes, para que a gente consiga sensibilizar sobre a importância social do transporte público prestado à população. Existe também um grande esforço que deve ser feito em relação aos marcos legais, leis sobre vales-transportes, isenções, tudo isso deve ser discutido com a sociedade e ampliado ou facilitado com o uso de novas tecnologias. Têm surgido novas formas e novas tecnologias, e os marcos legais têm ficado para trás. A gente vê, cada vez mais, a mobilidade como serviço, leis complexas sobre o vale-transporte e gratuidades, que devem ser discutidas com a sociedade. para que o transporte possa se tornar cada dia mais sustentável.

Atual prefeito de São José dos Campos, FELICIO RAMUTH é formado em Administração com pós-graduação em Gestão Pública pela Fundação Getúlio Vargas. Foi eleito em outubro de 2016 com 62,2% dos votos válidos para o mandato de 2017 a 2020. Foi Secretário de Transportes e Assessor de Planejamento da Prefeitura Municipal de São José dos Campos durante o mandato de Eduardo Cury, bem como Presidente da Urbanizadora Municipal S.A (Urbam), entre 2009 e 2012. Recebeu o selo Prefeito Empreendedor 2019, em reconhecimento aos programas desenvolvidos na prefeitura. Sua última premiação se refere à frota elétrica da Guarda Civil Municipal, fazendo com que a prefeitura de São José dos Campos fosse a única instituição pública do Brasil a receber o Prêmio Empresa Inovadora Destaque 2019.



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