Ponto de vista

Opiniões de especialistas para você saber e comentar

Pesquisar
Assunto
Data de
Data até
Autor
Veículo

17/11/2019 00:00

Zânia M. M. Gouveia

Novos Contratos de Transporte de Passageiros por Ônibus na Cidade de São Paulo

Há 28 anos foi realizada a licitação que iniciou o processo de municipalização dos serviços de transporte coletivo de passageiros, por ônibus, na cidade de São Paulo. Subjacente a esse processo, havia outro, da então prefeita Luiza Erundina, de instituir na cidade de São Paulo a tarifa zero. Para tanto, era necessário alterar a lógica de decisão de operar uma linha, por parte dos empresários, a da rentabilidade da linha. Era imperativo, portanto, instituir uma nova forma de contratar e gerir os serviços de transporte coletivo de passageiros na cidade.

Foi então aprovada a Lei Municipal nº 11.037, de 1991, que estabeleceu novo critério para contratação pelo custo do serviço prestado. Essa legislação trouxe, em minúcias, todos os parâmetros técnicos para esse custeio.

Os contratos firmados, sob a égide da Lei Municipal nº 11.037, previram a remuneração das empresas com base na apuração dos custos incorridos na prestação dos serviços, mais uma taxa para a remuneração do capital alocado na operação, bem como uma taxa de administração dos serviços.

Esse modelo de contratação permitiu que a operação da Companhia Municipal de Transportes (CMTC), que era majoritariamente deficitária, fosse transmitida para o operador privado.

Assim, o poder público, a quem cabia o papel de operador exclusivo do sistema, após delegar todo o serviço à iniciativa privada, assumiu o papel de agente planejador e fiscalizador desse serviço. E toda a receita arrecadada com o transporte de passageiro passou a ser do poder concedente, que se tornou o gestor desses recursos.

Foram dez anos de contrato, período no qual a quantidade de aditamentos superou a marca de um para cada ano da contratação. Ocorreram, ainda, aditamentos de prazo contratual, rescisões antecipadas e contratações emergenciais até que nova licitação fosse realizada.

Todo esse processo, incialmente, trouxe ganhos ao sistema de transporte, por permitir maior flexibilidade no planejamento e na implantação de novos serviços, bem como aquisições de novos veículos e introdução de novas tecnologias.

Entretanto, esses contratos foram totalmente desnaturados ao longo da sua execução, por força de sucessivos aditamentos contratuais e, em alguns períodos, por alteração unilateral de contrato por parte do poder concedente. Aliado a esse fator, nesse período o transporte clandestino avançou na cidade toda sem barreiras.

Esse estado de coisas fez com que o operador visse a remuneração do seu contrato cair drasticamente. O período que antecedeu a nova licitação, que iniciaria outro período de concessão, encontrou um sistema com uma frota envelhecida e empresas descapitalizadas; muitas delas faliram e deixaram a cidade.

Em 2003, na administração da prefeita Marta Suplicy, ocorreu a nova licitação, só que agora sob a égide da Lei Municipal nº 13.241, de 2001. A administração entendeu que o modelo de contratação proposto pela Lei nº 11.037 não era adequado para uma gestão eficiente e eficaz dos serviços de transportes da cidade.

A nova legislação colocou o carregamento de passageiros como o principal critério para a remuneração das empresas contratadas. Embora o custo estivesse implícito nos valores estabelecidos por passageiro transportado, o foco passou a ser a produtividade do serviço.

O operador deixou de ser ressarcido pelo custo do serviço e a remuneração do seu capital passou a ser estabelecida a partir do cálculo da taxa de retorno do fluxo de caixa projetado para o período da concessão. Por sua vez, a receita passaria então a ser calculada pela multiplicação da tarifa de remuneração por passageiro, ofertada na licitação, pelo passageiro transportado. A medição do serviço não mais foi utilizada no cálculo da remuneração. A falta de cumprimento da ordem de serviços era geradora de multa, apenas.

Mais uma vez, assistimos à desconfiguração dos contratos por meio de sucessivos aditamentos contratuais. A Prefeitura, como produto da sua política tarifária, instituiu novas gratuidades para o passageiro pagante e a arrecadação do sistema caiu drasticamente.

Mais uma vez, o contrato não foi suficiente para garantir às empresas o recebimento da remuneração de capital fixada contratualmente. Vendo em retrospectiva, o que esses dois contratos tiveram em comum?

1) A insegurança jurídica, nenhum dos dois contratos teve a sua execução em conformidade com o que foi licitado.

2) Dimensionamento do serviço em desacordo com a necessidade dos passageiros.

3) Incapacidade de pagamento do serviço contratado por parte da Prefeitura.

Após tudo passado, é possível constatar que, não obstante a montanha-russa que foi a execução desses contratos e as críticas recebidas pelos operadores por parte da sociedade civil, houve um avanço qualitativo na prestação dos serviços e inovação tecnológica no setor, com a introdução de novas tecnologias, tanto veiculares quanto de equipamentos embarcados e diminuição da idade média dos veículos em circulação.

Em 2019, após longo processo licitatório, sob a égide da Lei Municipal nº 13.241, de 2001, e do Decreto nº 58.200, de 2018, novo contrato foi assinado, por um prazo de quinze anos.

A arquitetura desse novo contrato resgatou dos contratos anteriores os seus principais aspectos: o cálculo diário do valor dos serviços efetivamente prestados e a apuração diária dos passageiros transportados, para fins de remuneração dos serviços e para o planejamento operacional. O contrato atual abarca os dois critérios, já utilizados, relativos à remuneração do serviço, e torna-se muito mais complexo que os anteriores.

Adicionalmente, esse novo contrato, por meio de complexas fórmulas, introduz no cálculo da remuneração um novo componente medidor da qualidade do serviço, que também incidirá na forma de desconto, na remuneração final.

Em análise elaborada pelo economista Wagner Palma (1), do Sindicato das Empresas de ônibus do Município (SPUrbanuss), o impacto desse novo indicador pode afetar, de forma negativa, em até 30% a margem de lucratividade do contrato, se considerado o atual nível de desempenho das operadoras.

As penalidades do contrato saltaram de 13 para 130, com o agravante de muitas dessas serem aplicadas em duplicidade. Por exemplo, se o operador não realizar uma das viagens programadas, além do desconto direto no cálculo do custo efetivo do serviço, a sua nota de qualidade será afetada e um novo desconto incidirá na sua remuneração.

O novo contrato tem, ainda, como diferencial, com relação aos anteriores, a previsão de investimentos maciços em tecnologia para monitoramento da frota e da operação, bem como uma atuação em tempo real dos gestores para intervenção e ajustes na prestação dos serviços. Esse último fator fará com que os custos operacionais sejam mais dinâmicos do que jamais foram, pois serão afetados não só pelo desempenho operacional, mas também pela eventual alteração da própria ordem de serviço original no dia a dia.

A Prefeitura também incorporou nesse contrato uma série de exigências relativas à elaboração de demonstrativos contábeis, fiscalização de frota e equipamentos, treinamento de pessoal e outras formalidades contratuais, que se de um lado acenam com maior rigor da gestora com relação à fiscalização da qualidade do serviço, por outro mergulha as empresas operadoras em um mar de burocracia e tornam a administração do serviço muito mais onerosa.

A revisão quadrienal prevista nesse novo contrato, que se apresenta à primeira vista como mecanismo para se manter o equilíbrio contratual, servirá na prática para retirar do operador qualquer eventual ganho de produtividade ou de eficiência administrativa; portanto, para reduzir valor da remuneração.

Considerando o histórico dos contratos de transporte público de passageiros na cidade de São Paulo e a complexidade extrema do atual contrato, aliada a um número maior de exigências, operação dinâmica e rigor maior na fiscalização dos serviços, é possível concluir que o risco desse novo contrato foi sobremaneira elevado. A probabilidade de o operador não conseguir obter a tarifa proposta é grande. Esse risco não foi contemplado na taxa de interna de retorno calculada para o contrato.

Desse modo, dando por certa a implantação das novas tecnologias, conforme previsto no edital de licitação, para que mais uma vez não se desperdice uma oportunidade de crescimento e evolução do setor, contratante e contratados deverão fazer uma criteriosa gestão de risco.

De uma parte, o gestor público deverá alcançar a excelência, não só no planejamento operacional e orçamentário, mas na gestão da operação e do contrato como um todo, pois novos desafios foram incorporados aos já anteriormente existentes (intervenção em tempo real, indicadores de qualidade, pesquisas junto aos usuários, compliance, entre outros).

De outra parte, os concessionários operadores do sistema, ainda que o contrato não deixe margem para autonomia, pois na Gestora está a instância de decisão, deverão alcançar a excelência operacional, com a superação dos próprios limites, para conferir à sua prestação de serviço a agilidade e a qualidade que se pretende alcançar. Ainda, o operador deverá fazer uma rigorosa gestão de custos e indicadores de desempenho, com vistas a mitigar os riscos desse contrato.

A tecnologia se impõe hoje como uma ferramenta indispensável, qualquer que seja o ramo de atuação, não é diferente com o transporte de passageiros. O uso dessa tecnologia dentro das garagens como ferramenta de gestão e o investimento em pessoal técnico especializado serão primordiais para o operador se antecipar aos riscos, corrigir rumos e implementar uma interlocução de alto nível junto à Gestora Pública de maneira a alcançar o resultado positivo desse contrato.

Zânia M. M. Gouveia - Economista e advogada. Sócia-Diretora da ZG Consultoria Empresarial.

NOTAS

Texto base da palestra proferida em Seminário organizado pelo Sindicato das Empresas de ônibus do Município (SPUrbanuss), em 06 de novembro de 2019

(1) Economista Wagner Palma, em palestra proferida em seminário realizado pelo SPUrbanuss em 06 de novembro de 2019



Comente

Nome
E-mail
Comentário
  * Escreva até 1.000 caracteres.
 
 



Envie o link desta página um amigo

Seu Nome
Seu E-mail
Nome do seu amigo
E-mail do seu amigo
Comentário